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A Publicidade Vai Ao Cinema | A propaganda e as questões raciais abordadas em “Compasso de Espera”

Jorge Oliveira (Zózimo Bulbul) é um publicitário de relativo sucesso. Caminhando pela praia, no Rio de Janeiro, dois conhecidos pedem para não se falarem ali; que deixem o papo pra São Paulo, onde moram, porque os amigos vão estranhar se vê-los conversando com um homem preto. 

Na cena seguinte, Jorge responde para um repórter se existe preconceito racial no Brasil, provocando-o: “você deixaria sua filha se casar com um negro?”. De saída, o entrevistador diz que sim. Mas a convicção não se sustenta. “Pela segurança da minha filha, acho que não”. E manda um “estaria esse homem de cor preparado para isso?”. 

“Compasso de Espera”, filme brasileiro de 1973, é o primeiro a colocar um personagem preto como protagonista de elite, incluí-lo como membro de uma classe média e que aproveita dos privilégios desse sistema. Jorge vive em um apartamento bom. É reconhecido no trabalho. Está lançando o segundo livro de poesias. 

Ator e diretor, Zózimo Bulbul.

A escolha da publicidade como cenário tem dois gumes. Só em uma agência, naquela época, Jorge teria tanta liberdade. Ao mesmo tempo, ele é o único. Ou seja, é a propaganda fazendo publicidade de si mesma. 

É interessante como o roteiro desenha a fetichização em torno de Jorge, revelando camadas profissionais, sexuais, sociais e masculinas. A presença de um preto na elite é vista assim, como uma diversão.

Não é à toa, por exemplo, que a principal trama de “Compasso de Espera” une o publicitário a jovem modelo, Cristina (Renée de Vielmond). Branca, paulista, rica, com tantos sobrenomes emparelhados que o RG dela parece uma avenida, o interesse de Cristina por Jorge é constantemente execrado. Inclusive, por Jorge, inseguro se a paixão é genuína ou só uma forma de confronto. 

Em um dos vários momentos cruelmente atuais, o casal janta em um restaurante. A mãe dela, que estava no mesmo lugar, vai até a mesa e diz: “agora também são negros? Nunca achei que você fosse tão baixo”. 

A liberdade sexual da jovem é piorada no relacionamento com Jorge. Aliás, pincelando os diversos preconceitos emoldurados pela tradicional família brasileira, o racial está alguns andares acima do sexual. 

Ema (Elida Palmer), uma mulher mais velha e branca que capitania a agência, mantém um caso com Jorge. Em dada cena, dois clientes alemães entregarem um briefing para Jorge. Como defesa do desconforto, Ema responde que ele é “o melhor funcionário”e escuta de um deles: “tenho família, filhos. Tudo direito, mas por fora tenho uma escurinha”. Na cena mais cruel, Jorge e Cristina se beijam na praia para, em seguida, serem friamente atacados por pescadores. 

Antunes Filho, um dos grandes diretores do teatro brasileiro, equilibra seu manifesto em um texto atemporal, que vê nos conflitos raciais do país a sua própria gênese. A propaganda que fazemos para o mundo, de uma nação feliz, aberta e cheia de carnavalesca alegria, é uma caricatura sazonal. Não faz parte do que somos, da massa trabalhadora, intelectual, social e os demais andaimes que constroem a personalidade de um povo. 

Antunes Filho, um dos maiores artistas do Brasil. “Compasso de Espera” é o único filme dirigido por ele.

Ao colocar Jorge como motor desse comercial, “Compasso de Espera” mede o real poder das teorias sociais na vida cotidiana dos pretos brasileiros. A violência separatista e a esperança integracionista achariam diâmetros iguais nas favelas e bairros nobres do Brasil?

O filme mostra que não. A estética preta e branca reforça o tema proposto por Antunes Filho. Seu filme é inovador até hoje por galvanizar a figura de um preto ao centro do seu universo e entrelaçar outros conflitos silenciados na época, como a homossexualidade. Sendo ele um diretor branco, não é seu dever imaginar como o Brasil poderia ser igualitário, mas ostensivamente racista. E o faz com um discurso poderoso sobre nossa cultura subterrânea, nossa vergonha e derrota eterna como agentes de formação.

Visitante desta elite, Jorge se contamina com questões existenciais que jamais poderia ter se não vivesse no meio dela. Suas raízes, sua posição, seu sofrimento, seu esforço e trabalho sempre refletem a cor da sua pele. Sua falta de rebelião, segundo ele, é lógica. Faz muito mais sentido sofrer num carro bom do que sem nada. O problema é que não há descanso nessa tese. Enquanto Jorge for o único preto na agência, escrevendo livros e andando de terno, sua solidão transpassará por gerações, caluniando o poder dominador da elite na mesma medida em que o denuncia. 

Em 1973, ter um preto em uma grande empresa, pertencendo a classe média do país e caminhando pela praia aproveitando o verão, era uma novidade. Hoje ainda é? 

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