Acertando umas contas

Por alguns anos fiz parte do Conselho da AACD, Associação de Assistência à Criança Deficiente. Isso começou em torno de 2000.

Alguns anos antes a MCann-Erickson, que fica em frente à instituição, havia sido convidada pela AACD para ser sua agência voluntária, pro-bono. Nunca me esqueço do dia em que o Phillippe, diretor de marketing da AACD, veio até minha sala e fez o convite, quase uma intimação.

Toda nossa equipe entrou de cabeça no projeto, inclusive eu, durante anos. Trabalhávamos com as mesmas técnicas e talentos com que trabalhávamos nossos outros clientes comerciais, em busca dos mesmos resultados. A sério, pra valer. Não por caridade ou filantropia, mas por crença na transformação da qualidade de vidas.

Minha equipe e eu chegamos a passar noites em claro para trazermos ao Brasil, acompanhar a produção e a transmissão do primeiro Teleton, em 1998. Aí entraram o Ângelo Franzão, a Yvonne Olmo, o Ralf e a Nílvia, A Gabi e a Cris del Nero, o Paulo Manetta (nome ideal pro cliente) e mais uma tropa bem disposta e cheia de valores que vão além da Comunicação, da Propaganda.

Eu, pessoalmente, me entreguei de corpo e alma, horários e tarefas. Talvez por isso eu tenha sido convidado pra ser Conselheiro da AACD, em meio a tantos nomes ilustres, empresários, celebridades graúdas do mundo dos negócios.

Desde a primeira reunião do Conselho da AACD, numa sala austera, pé direito alto, mesa grande de mogno, quadros dos fundadores e primeiros diretores da instituição, havia um quadro que me intrigava: o cara, bigodudo que nem eu, não tirava os olhos de mim. Se pudesse, eu denunciaria a foto por assédio ou, no mínimo, por bullying.

Eu mudava o olhar, mas sentia que o cara continuava me seguindo. Na reunião seguinte, sentei de costas pra esse quadro, na esperança que ele me desse sossego.

Mas o cara continuava me fuzilando com o olhar. Eu sabia, eu sentia, me queimava a nuca, me cutucava a alma.

Tomei coragem e li no quadro: “Dr. Renato Bonfim, fundador da AACD”. Bom, pelo menos era um cara importante.

Meses depois, numa macarronada de domingo na casa da minha mãe, ela disse, entristecida: “Você viu quem morreu? O Dr. Renato Bonfim…”

Em 1956, quando a medicina não era tão avançada e os recursos tecnológicos eram precários, fui atropelado por um caminhão. Fui dado como morto, ressuscitado mecanicamente e estava indo pra sala de cirurgia pra me transformar num moleque-tronco, talvez um diretor de criação sem pernas, que seriam amputadas ali mesmo.

Um médico, o jovenzinho Dr. Renato Bonfim, propôs a meus pais fazer uma cirurgia que poderia reconstituir minhas pernas. Índice de sucesso dessa nova técnica? Zero.

Eu seria a primeira cobaia. Se não desse certo, voltaríamos pra onde estávamos: amputar minhas pernas.

A cirurgia deu certo, sempre levei uma vida normal. Me restam apenas cicatrizes gigantescas e uma dívida impagável pra com o Dr. Renato Bonfim e a AACD.

Era esse o acerto de contas que ele vinha me cobrando nas reuniões do Conselho, naquela sala sisuda e densa.

Ainda bem que eu honrei, mesmo sem saber. E passei a entender muitas outras coisas.

Texto publicado originalmente no Blog do Perci

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