China, uma surpresa que já era esperada

Viajar para a China pode parecer uma decisão exótica ou desafiadora. Para outros, uma visita obrigatória aos que se dedicam a analisar inovação e avanço tecnológico.

A verdade é que as mais de 30 horas de viagem e esperas no aeroporto já nos dão uma noção clara da distância que nos separa dessa nação que foi grande no passado, está voltando à sua era de glória, apesar de um período recente de penúria, fome e comiseração.

Pois foi exatamente essa crise social imensa, matando de fome milhões de chineses, que permitiu o salto atual em bases mais sólidas e permanentes. Por mais que a democracia falte, há sobras de lembranças do que poderia ser, se não tivesse sido, e isso acalma e conforta os corações e mentes mais conscientes e ansiosos por liberdade. Pelo menos temporariamente.

uma ode ao empreendedorismo selvagem frente a uma centralização de poder na mão do estado

Há claramente nessa sociedade uma noção óbvia de trade off entre controle e comida, suspeição e acesso, valorização do indivíduo vs. direito da maioria. Em resumo, há uma consciência da perda de um certo grau de liberdade para uma garantia mínima de segurança alimentar e educação básica. E não adianta julgarmos essa visão com nossa régua ocidental. 

Na China, a pirâmide de Maslow ainda precisa ser escalada para adivinharmos os próximos capítulos. Até lá, Millennials ainda serão loucos por roupas de grife, o chefe é o ser supremo nas organizações e a obsessão pelo estudo não é uma qualidade do indivíduo, mas uma obrigação familiar com envolvimento direto de parentes próximos e distantes.

É uma sociedade caótica, com problemas graves de trânsito e poluição, mas que opera por debaixo de uma ordem extrema. Um país que optou por pensar a longo prazo pois sofreu na pele a falta de visão do futuro. Um povo que deu um salto quântico em direção à inovação por entender que esse era o único caminho para organizar minimamente uma população de 1.4 bilhão de habitantes.

Shangai, a capital comercial e financeira da China

 O que choca a todos que chegam em Shanghai, por exemplo, é a excelente qualidade da infraestrutura em todos os segmentos. Estão construindo um país para durar muito e com uma crença inabalável do poder hegemônico iminente. A qualidade está em todos os materiais aplicados, na ousadia de suas obras monumentais e principalmente na velocidade de implementação do que é decidido.

Como democratas que somos, lastimamos muito as decisões centralizadas e mão forte de governos autoritários. Mas não podemos deixar de avaliar as vantagens competitivas que isso gera num mundo globalizado e de forças hegemônicas contrastantes.

No Brasil, a Lei da Informática que vigorou no início da década de 90, tinha como objetivo proteger a indústria nacional da concorrência estrangeira. Mas isso resultou num atraso irremediável na nossa introdução ao universo digital. 

Na China, a proteção é parecida, mas longe de atrasar, criou verdadeiras gigantes desse novo mundo como a Tencent, Alibaba, Didi e Baidu que hoje rivalizam com as líderes do Silicon Valley.

Na minha visão liberal, continuo com restrições imensas aos privilégios protecionistas, mas não posso deixar de me impressionar com o desenvolvimento que essa proteção está deixando de legado na economia chinesa, apesar de minhas dúvidas quanto ao real poder competitivo dessas empresas no mundo corporativo global.

Na China está evidente uma dicotomia entre um país comunista com uma economia capitalista, uma ode ao empreendedorismo selvagem frente a uma centralização de poder na mão do estado, um controle rígido da informação, apesar de uma definitiva escolha pelo mecanismo de crescimento via iniciativa privada.

Resta saber, quão privada de verdade é essa iniciativa e entender os vasos comunicantes do poder da informação. Mas isso não tira o brilho de uma sociedade que está se reinventando e se preparando para fazer parte do Big League em termos globais e não apenas regionais.

Talvez a resposta mais óbvia para essa evolução tão rápida e surpreendente da China esteja numa noção clara de que, se por um lado falta liberdade de expressão, sobra liberdade de ação. Em nossos países, primeiro regulamos e depois permitimos a evolução de determinado setor. Na China é o contrário. Primeiro permite-se tudo, liberdade total e irrestrita. E depois que se caminhou um longo terreno, aí então chega a regulamentação num mercado já expandido, disputado e maduro. 

É claro que nessa altura, alguém se sentirá prejudicado, mas aí entra a mão forte do governo que determina como as coisas devem funcionar dali para a frente. O Jus Sperneandi simplesmente não traz consequências. 

Essa inversão sutil, mas importante, de avançar antes e regular depois, ao invés de regular antes de deixar avançar, pode estar por detrás dessa enorme capacidade de expansão e velocidade de realização da economia chinesa. 

Não é à toa que a Tencent possui mais de 300 empresas distintas em seu portifólio e o Alibaba mais de 150, em praticamente todos os segmentos de atividade. Essa construção de ecossistemas totais ou empresas tentaculares ou centopéicas só pode florir em ambientes onde concentração do poder econômico ainda não é assunto que tire o sono de ninguém.

Apenas como exemplo dessa pulsão empreendedora que toma conta deste país, basta citar que há 200 fabricantes distintos de carro elétrico na China, e o volume de vendas já chega a 30% do mercado total. E o país já lidera a produção mundial de painéis solares, equipamentos de reconhecimento facial, sistemas de pagamento mobile e outras centenas de produtos e serviços emergentes.

Apesar de todo esse viés inovador, é contrastante a visão tradicional de gestão que encontramos nas corporações. São estruturas hierárquicas rígidas, no modelo 996 (trabalhar das 9 da manhã às 9 da noite, 6 dias por semana), supremacia indiscutível do chefe, que atua mais como tutor que mentor, e demais características que já estão no seu ocaso em países da América e da Europa. 

Enquanto isso na educação, crianças chinesas se dedicam de 12 a 15 horas por dia ao conhecimento. A presença delas nas ruas é pequena, podendo serem vistas apenas nos horários de ida e vinda da escola. No restante do tempo, estão estudando, inclusive nos fins de semana. Se isso é bom ou ruim para essa geração, se serão mais ou menos felizes, fica difícil julgar. Mas por outro lado, fica também difícil competir. Essa obsessão dedicada ao estudo trará, a médio prazo, enormes desafios de capacidade competitiva para as sociedades ocidentais. E parece ser um traço forte e definitivo da cultura chinesa.  

Nas relações familiares, o patriarcado e respeito aos mais velhos continua predominante. Cabe ao filho, independente de ter 18 ou 70 anos, respeitar e obedecer ao pai, e esse traço de cultura parece resistir à todo esse ambiente inovador e disruptivo. Pelo menos por enquanto.

Aliás, é essa dissonância cognitiva entre tecnologia e comportamento social, relações negociais e familiares, liberdade de empreender e restrições de opinião que fazem a China ser um país tão fascinante e preocupante.

Fascinante como um observador que busca analisar as questões socioeconômicas, e preocupante como habitante que sou de um país onde os índices de produtividade são uma sexta parte dos chineses e que ainda discute a reforma da previdência com paixão e não com a razão.

O tempo que já perdemos, não volta mais. Mas o pior é ver que, numa sociedade cada vez mais globalizada, ainda convivemos com conceitos do passado e sem visão do futuro. E por isso, viagens como essa são tão importantes…

Updater: Walter Longo

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