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Coffee Break #3: Memórias de um amor líquido

Na obra Amor Líquido, o sociólogo Zygmunt Bauman pondera os amores em tempos tecnológicos e consumistas. O autor deflagra as conexões cada vez mais frágeis movidas por motivações supérfluas ou que simplesmente adotam padrões dos novos tempos, os quais não oferecem nada mais do que a satisfação prática, rápida e descartável.
Para o autor, atualmente, os compromissos incondicionais e aqueles do tipo “até que a morte nos separe” parecem cada vez mais uma “armadilha” que se deve evitar a todo o custo.
“Se você sabe que seu parceiro pode preferir abandonar o barco a qualquer momento, com ou sem a sua concordância (tão logo ache que você perde seu potencial como fonte de deleite, conservando poucas promessas de novas alegrias, ou apenas porque a grama do vizinho parece mais verde), investir seus sentimentos no relacionamento atual é sempre um passo arriscado. Investir fortes sentimentos na parceria e fazer voto de fidelidade significa aceitar um risco enorme: isso o torna dependente do seu parceiro.
Todavia, o que para o autor realmente é amor?
“O amor, por outro lado, é a vontade de cuidar e de preservar o objeto cuidado. Um impulso centrífugo, ao contrário do centrípeto desejo. Um impulso de expandir-se, ir além, alcançar o que está lá fora. Ingerir, absorver e assimilar o sujeito no objeto, e não vice-versa, como no caso do desejo. Amar é contribuir para o mundo, cada contribuição sendo o traço vivo do eu que ama. No amor, o eu é, pedaço por pedaço, transplantado para o mundo. O eu que ama se expande doando-se ao objeto amado. Amar diz respeito à autossobrevivência através da alteridade. E assim o amor significa um estímulo a proteger, a alimentar, abrigar; e também à carícia, ao afago e ao mimo ou — ciumentamente — guardar, cercar, encarcerar”
As melhores amostras do amor em estado bruto talvez não estejam nos romances mais vistos em algum serviço de streaming, nem em novelas ou em best sellers literários. O cinema possui suas pérolas que nos fazem suspirar e as obras mais concisas nos apresentam uma narrativa tão realista que nos arremessam para o âmago de relações. Remontam a vida e suas regras, sem burlar nenhuma linha.
Um filme: “Newness” (Drake Doremus)
Seguindo a lógica sobre amor líquido, refletida por Bauman, uma boa obra que retrata o amor e sexo em tempos tecnológicos é o filme Newness dirigido por Drake Doremus. A história permeia pelos dilemas trazidos pela tecnologia, pois enquanto a internet criou pontes para conectar mais e mais pessoas, ao mesmo tempo, criou imensos abismos com os likes cada vez mais superficiais. Esse contexto impulsionou até o conceito Fast Sex; Slow Love, criado pela antropóloga norte-americana Helen Fisher.

Newness: sentimentos e sexo em tempos de Amor Líquido.
A trama embarca nos representantes da geração millennial Nicholas Hoult e Laia Costa, cujo interesse mútuo surge em um aplicativo à la Tinder e os leva a uma relação duradoura (em tempos modernos) e ao tédio dado ao contexto cheio de outras possibilidades e opções que estão disponíveis no “mercado” das relações. Então optam em abrir a relação, com regras e tudo o mais, como um bom manual.
É tudo tão rápido — como pede as relações líquidas e descartáveis do contexto — que essa premissa toma conta apenas dos 30 minutos iniciais do filme, deixando que o restante do roteiro foque nas consequências da situação de se tratar relações amorosas como meras casualidades instantâneas.
Um filme: “Memórias de um amor” (Harry Macqueen)
E o amor duradouro? Aquele na visão de Bauman cuja essência é constituído pela “vontade de cuidar e de preservar o objeto cuidado”? Este, quando efetivado em um relacionamento entre duas (ou mais?) pessoas, solicita paciência, dedicação e ternura.
Entretanto, até onde vai à cumplicidade em um casal que se vê à beira de um precipício? E o dilema entre a dor da despedida e o pavor de terminar sozinho?

“Não vamos morrer por falta de coisas admiráveis, mas por falta de admirá-las.”
Por isso, o filme inglês Memórias de um Amor é uma descoberta sensível sobre uma história de companheirismo na iminência da morte. O filme possui características de road movie e traz os gigantes Stanley Tucci e Colin Firth como Tusker e Sam, respectivamente. Trata-se de um casal passeando em um moderno trailer, trilhando por cenários naturais lindos e poéticos. É um contexto triste, pois Tusker está com uma doença mental degenerativa, enquanto Sam se esforça para cuidar do esposo de décadas.
Com diálogos sublimes e por vezes duros, a narrativa reflete sobre os limites das relações corpóreas em oposição da eternidade do sentimento de cuidado e gratidão. Lealdade, amor e solidão são condensados de forma melancólica no roteiro, porém contado de forma naturalmente eloquente.
O título original do longa-metragem é Supernova, fazendo uma alusão ao evento astronômico que mistura o caos e a transformação, como descrito em um sublime diálogo:
“Quando uma estrela fica muito velha, ela perde combustível e explode como fogos de artifício. Enormes. E quando essa estrela morre, torna-se muito brilhante e dispara todas essas coisas a viajar pelo espaço ao longo dos anos e anos e, eventualmente, é o que forma a gente”.
O amor — oriundo em uma relação — tem o poder de transformar… para o bem ou para o mal.
Um livro: “Um amor depois do outro” (Ivan Martins)
Chegar em relações sólidas com 20, 30 anos não é para qualquer um. Se chegar, bacana, caso contrário, pelo menos se tem histórias para contar enquanto toma um vinho com os amigos, certo?
O livro de crônicas Um Amor Depois do Outro, escrito por Ivan Martins, reúne seus textos para a revista Época, trazendo um olhar sobre a importância da liberdade ao buscar o conceito de amar e ser amado nas relações. Fala sobre as promessas que descumprimos e sobre o que devíamos falar, mas não temos a coragem. E está tudo bem.
“Não há nada mais instável que os sentimentos humanos. Durante um único dia, eles oscilam violentamente entre a paixão desesperada e o desprezo exasperante. A mesma pessoa que, pela manhã, inspira o carinho mais intenso, pode nos deixar, à noite, imersos em raiva e frustração.” — Ivan Martins, Um Amor depois do outro.
Uma música: “If i say” (Mumford & Sons)
A canção que pode muito bem sintetizar o tema amor é a canção do grupo indie-folk-rock Mumford & Sons: “If ISay”.

A faixa faz parte do álbum Delta, lançado em 2019, e é um dos melhores registros musicais do grupo britânico. Na época do lançamento, ela foi descrita como uma música que “desce, voa e incha em torno do vocal íntimo, reflexivo e adequadamente intenso”. Ouvindo, você entende bem a descrição. É de arrepiar.
Produzida por Paul Epworth, cujo currículo traz a produção em canções como Rolling In The Deep e Skyfall da Adele, além de participação criativa nos álbuns do Coldplay e Florence and the Machine, a música apresenta um arranjo de cordas da compositora britânica de trilhas sonoras Sally Herbert.
Uma curiosidade sobre a música é que tecladista e sintetizador Ben Lovett revelou que “sonhou” com a música enquanto estava em Nova York. “Entrei no meu banheiro e estava no meu aplicativo de voz às 3 da manhã”, disse ele em entrevista para Beats 1 de Zane Lowe na Apple Music. “Eu enviei para todo mundo na manhã seguinte e eles ficaram tipo, ‘Sim, tudo bem. Isso é uma música.’”
Criatividade não tem hora e nem lugar.
Até a próxima!
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Updater: Ivan Monteiro
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