Como você quer que sua vida seja?

“O que você quer ser quando crescer?”. Na falta de um começo de conversa melhor com crianças, os adultos lançam essa pergunta, cuja resposta tende a ser tão desconexa quanto a ideia de realidade do adulto que a faz. Mas há um atenuante para isso: é apenas o reflexo involuntário do conceito de trabalho que formou nosso imaginário, mais de 200 anos depois do nascimento da Primeira Revolução Industrial. 

O tempo muda a forma de trabalho, pois ele faz parte de uma teia complexa de contextos, eventos e períodos. Entretanto, a essencialidade do trabalho para as pessoas permanece intacta: uma vida sem trabalho é virtualmente impossível. A existência de cada um de nós é permeada por ofícios, ocupações e profissões. Ainda antes da ascensão da Revolução Industrial, Voltaire – o grande mentor de outra revolução, a Francesa – refletiu sobre isso. De acordo com ele, “o trabalho poupa-nos de três grandes males: tédio, vício e necessidade.” Porém, juntamente com as mudanças de forma, o valor do trabalho mudou. Ele tornou-se um marcador, um definidor e um separador que define quem somos e o nosso lugar no mundo. Bom, era até pouco tempo, pois estamos no meio de uma mudança de perspectivas.

A nova mudança no trabalho está, ao mesmo tempo, em suas possibilidades e em sua falta. Para além dos medos da automação, da inteligência artificial, e da integração da tecnologia no universo das atividades humanas, existe uma crise mais fundamental: o significado do trabalho. Somos, hoje, o resultado de uma realidade pós-industrial – podemos escolher e mudar o trabalho que, até então, nos definia. Uma das características da contemporaneidade é a expansão do conceito que temos daquilo que nos define. Tornamo-nos múltiplos, transitamos em universos plurais, somos perpassados por ideias e ideais contraditórios. E, ao que tudo indica, esse é um processo irreversível, e estamos em um momento muito peculiar: presenciamos e vivemos a as regras de um dos  paradigmas macroeconômicos mais transformadores na história da humanidade – a economia do conhecimento. 

Economia do conhecimento

Na economia do conhecimento, o conhecimento não se baseia apenas em listas de informações, mas é socialmente construído, discutido e compartilhado. Pela primeira vez desde o início da economia industrial, as ferramentas de produção de valor não são de propriedade de empresas, mas estão facilmente acessíveis para pessoas comuns. Uma das mudanças sociais mais profundas da economia do conhecimento é que as pessoas não precisam mais de marcas e empresas para significar sua identidade, status social ou estilo de vida. As pessoas são capazes de criar representações autênticas (ou mesmo brincar com múltiplas identidades) de si mesmas em seus próprios espaços digitais. Essencialmente, estamos menos interessado em ser parte de uma estrutura corporativa onde a recompensa pelo sequestro intelectual e do nosso tempo é o salário. Afinal, com a possibilidade de construir nossas próprias marcas pessoais em plataformas digitais, a ideia de desenvolver e vender seu próprio valor para comunidades de semelhantes é muito mais fascinante.

Na economia do conhecimento, a criatividade é a habilidade valorizada e cultivada. Essa sociedade pós-industrial que estamos tem sido associada ao conhecimento e à informação e por essa razão é construída sob o signo da criatividade, da flexibilidade e da adaptabilidade a contextos diferenciados. Os profissionais que hoje têm essas habilidades fazem parte da indústria criativa, segmento essencial em uma realidade de negócios que impele experiência, mensagens e narrativas para sobreviver. Falamos de um contingente de 15 milhões de pessoas, que correspondem a 15,9% do total da classe trabalhadora brasileira, cujo crescimento mais que dobrou na última década. Por conta da granularidade e liquidez da indústria a qual pertencem, parte significativa deles trabalham de forma independente, descentralizada e em um contexto colaborativo e sob demanda. 

Por serem capazes de desenvolver trabalhos onde suas visões de mundo e talentos podem ser mais livremente aplicados e praticados, um vínculo formal de trabalho com carteira assinada não faz sentido – o conceito é trabalhar com empresas, não para empresas. Por definição falamos de pessoas que tornaram-se marcas pessoais e conhecidas que emprestam a empresas valores, visões e ideias que elas não são mais capazes de terem sozinhas. Apesar dos desafios, a liberdade de fazer o que se sabe, sobrepõe-se à necessidade de ter uma carreira em uma corporação. 

Construção coletiva

Apesar da pujança desse segmento no Brasil, ainda há muito a ser feito em termos de incentivo e reconhecimento. Não há um programa de políticas públicas para essa “economia criativa”. A flexibilidade, adaptabilidade, versatilidade, autonomia, multifuncionalidade e intermitência são aspectos valorizados pelos trabalhadores criativos, mas, muitas vezes, essas situações confundem-se com condições de trabalho difíceis, remuneração flutuante, descontinuidade das contratações e prestações de serviço. Desse modo, é necessário criar redes de apoio, formas de proteção e soluções que preservem os trabalhadores criativos das inseguranças do mercado de trabalho, ao mesmo tempo que os coloquem em lugar seguro para extrapolarem seu potencial e gerar mais negócios. 

Em um mundo onde abrir mão de uma carreira é, de certo modo, abrir-se para as possibilidades da vida, seria interessante mudarmos as perguntas que fazemos para as crianças que encontramos. Em vez de “O que você quer ser quando crescer?”, não seria mais interessante perguntar “Como você quer que sua vida seja?”

Produzido em parceria com BNKR, The Zeitgeist Observatory

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