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Em 2023, Festival Coala fez sua melhor edição
O beijo entre Marina Lima e Fernanda Abreu no palco do Festival Coala foi apenas um dos momentos simbólicos que essa edição proporcionou. De tão intensa, a sensação foi de que entre o domingo (17) e o início na sexta-feira (15), se passaram uns 50 anos. No melhor dos sentidos, já que a linha temporal da música brasileira criada pela nona edição começou apresentando alguns bons nomes em meio a outros que já se consolidaram.
Para abrir o festival, Jadsa, Boogarins, Febre90s e FBC se apresentaram em sequência. E, pontualmente às 17h20, Péricles botou todo mundo em torno da sua roda de pagode e samba com “Jogo da Sedução”. À vontade, ele passou por suas músicas conhecidas, homenageou Arlindo Cruz com “O show tem que continuar”, levou Tim Bernardes para uma participação discreta, e encerrou sua passagem com muita classe. Foi um grande show que só me fez sonhar: “hum, Xande de Pilares entrando agora, hein?”
Já aquecido, o público me pareceu menos desconfiado do que eu imaginava com o que Fafá de Belém faria dali um tempo. Fafá foi pescada pela zelosa curadoria de Marcus Pretto. E mesmo sendo uma grande artista, ela não frequentou o line-up de nenhum festival do gênero até então. Era um risco. Com “Vermelho” e “Emoriô”, Fafá espantou qualquer tipo de estranheza e dissipou seu nervosismo, que ela mesma confessou, em uma das apresentações mais surpreendentes do Coala. Depois do seu convidado, Johnny Hooker, puxar a homenagem à Marília Mendonça, Fafá pegou para si a interpretação de “De quem é a culpa?”, um dos clássicos da rainha da sofrência, conectando o momento com um trecho de “Evidências” e fazendo a performance de “Abandonada” com a sua potência e carisma peculiares. Transformou o festival numa arena de rodeio como jamais passou pela minha cabeça.
E ainda tinha o headliner. Em janeiro deste ano, eu vi o Olodum Baiana no Festival de Verão, em Salvador. Foi um dos nomes que me levaram até lá. Dessa vez, as duas bandas estavam ainda mais entrosadas, de modo que a musicalidade de cada um criou uma terceira parte, quase como um terceiro elemento, um artista novo.
Foi mais do que só ouvir versões vitaminadas de Lucro, Sulamericano, Várias Queixas ou Avisa lá que eu vou. O batuque do Olodum com a guitarra baiana de Roberto Barreto, do BaianaSystem, e os efeitos visuais da banda, provocaram um tipo de som tátil, tão pesado quanto um navio pirata. É muito difícil não incluir desde já esse show entre os melhores do ano. E Vandal, rapper de Salvador, ainda fez uma poderosa participação. Por mim, ele volta no ano que vem.
No primeiro dia também chamou atenção a organização do espaço: as ativações das marcas não atrapalharam o palco principal e a infraestrutura do festival funcionou sem perrengue. Sem contar na pontualidade dos shows!
O segundo dia
Já o sábado foi no modo Tim Maia: todo mundo reclamando do som. De Don L. à Pepeu Gomes, os artistas driblaram os problemas técnicos com apresentações muito vigorosas, com destaque para Suraras do Tapajós e Simone. Os dois nomes incluídos no line up a partir desse cuidado apaixonado da curadoria, comprometido com a diversidade da música brasileira, levaram o swing do carimbó indígena de um lado, com toda a versatilidade e encantamento do outro. Simone chegou pra mostrar que sua ausência em grandes eventos precisa ser repensada. Mais cedo, Jards Macalé e Ana Frango Elétrico também incendiaram o palco do Coala, abrindo os caminhos de vez para a já citada cantora, e os Novos Baianos, em um show impregnado da ausência de Moraes Moreira, mas emotivo também por causa dela. Bonito ver os Novos Baianos dando um rolê por aí.
O terceiro dia
No dia mais lotado e mais quente, os 45 minutos do show do Marcos Valle foram cruéis. Foi como assistir um curta-metragem de uma saga de 60 anos de carreira e 80 de idade. Pouquíssimo tempo para quem participou de verões importantes da cultura brasileira e ainda teve a luxuosa companhia de Joyce Moreno. O público pediu o hit “Mentira”, mas para manter a pontualidade do festival, o músico deixou o palco devendo essa. Nem se Ângela RoRo tivesse participado do show seguinte daria pra perdoar o tempo curtinho. Infelizmente, RoRo não foi e sobrou para Letrux carregar o peso do show que, pra mim, foi bem divertido, com uma energia propositalmente caótica. Foi a primeira vez que vi a artista ao vivo e a curiosidade a respeito da parceria dela com Ângela aumentou.
Mas foi o alinhamento astrológico entre Marina Lima e Fernanda Abreu que elevou este dia do festival para outra dimensão. A fúria de Marina, com uma certa malandragem de Fernanda, formaram um tipo de energia planetária que poderia justificar muita coisa boa na vida. Como me pegou esse show! E não só a mim. O Coala inteiro estava hipnotizado pelas cantoras, que se intercalaram no palco até o encontro explosivo em “Mesmo Que Seja Eu”. Daí até o final, nós vimos artistas com pleno domínio do que fazem, com euforia e energia para inspirar quem ouve e quem ama música, seja pop, rock, ou samba.
Aliás, pop, rock e samba foram matéria-prima para Jorge Ben Jor fazer um magnífico encerramento. É inacreditável a força dele aos 82 anos. Jorge Ben calibrou seu show pra caber em 1h40 e executou “Engenho de Dentro”, que eu nunca tinha escutado ao vivo, tocou bateria, se emocionou e saiu do Memorial da América Latina mais uma vez ovacionado por ser o que é: o Rei do Brasil e o Rei da Etiópia, como apresentou KL Jay.
O que faz o festival Coala ser, pelo menos pra mim, o melhor festival de música brasileira do país é justamente essa identidade fortíssima em unir linhas temporais diferentes; em oxigenar a história com o que tá borbulhando no presente; esse magnetismo em atrair as pessoas para assistir performances e encontros que não se repetem em outros lugares; é ter a coragem e inteligência para não se dobrar às ondas comerciais fáceis e mostrar, ano após ano, que formatar um bom festival de música justifica o investimento em nomes que fundaram movimentos culturais e permanecem relevantes, ainda que os algoritmos do Spotify digam que não. Joyce Moreno, Marcos Valle, Simone, Fernanda Abreu, Fafá de Belém e Marina Lima importam e podem chacoalhar qualquer evento porque a influência dessas pessoas está além deste tempo presente. Se podemos sonhar com a edição de 2024 tendo Martinho da Vila, Ivan Lins e Guilherme Arantes, Luciana Melo e Paulinho da Viola, pra dizer o mínimo, já que a curadoria do Coala é bem mais sagaz do que essas sugestões tortas, é por aquilo que o festival construiu tão bem ao longo desses quase 10 anos de vida: vem feliz, porque enquanto existirem eventos para receber a Música de braços abertos, a gente faz um país.
Updater: Leonardo Simões
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