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O conhecimento e a teoria do vácuo

Imagine que você esteja no centro de um imenso e vazio galpão retangular. Bem iluminado, climatizado e com uma tranquila música de fundo. Tudo o que existe no galpão são algumas dezenas de pilhas de livros antigos, encostadas bem no meio da parede mais longa do ambiente.
Deram-lhe a missão de criar um tapete de livros forrando todo o piso do galpão. Simples. Colocar um livro ao lado do outro, até que não se veja mais a madeira do piso. Não há um prazo para terminar a tarefa, nem alguém que fiscalize se você está trabalhando ou descansando.
Bem, você então começa a montar o tapete. Pega um livro, coloca sobre o chão; busca mais outro, coloca ao lado do primeiro. Aos poucos, vai crescendo uma colcha de livros ali no piso.
Curiosamente, passado algum tempo, surge uma situação curiosa. Você se vira para pegar um livro das pilhas, e quando se volta para colocá-lo no chão, percebe que um dos livros já colocados sumiu. Você observa intrigado, corre os olhos pelo galpão, não encontra ninguém, e supõe que seja ilusão sua. Coloca o livro que está em suas mãos no lugar onde teria estado o livro sumido.
Continua a construir a colcha, mas logo a situação se repete. Dessa vez, você tenta ignorar o espaço esvaziado e segue colocando livros pelo chão do galpão. Até que, incomodado com o vazio no meio da colcha, volta atrás e coloca um livro sobre o tal espaço. Vira os olhos, cuidadoso e vigilante, e torna a pegar um livro na pilha. No meio-tempo, o mesmo espaço volta a ficar vazio.
Irritado, você desafia a situação. Concentra-se naquele espaço e começa a preenchê-lo, repetidamente, a cada vez que pega um livro e percebe o espaço vazio. E assim você permanece por bastante tempo.
Você se dá conta de que a colcha permanece do mesmo tamanho que horas atrás e que talvez a quantidade de livros das pilhas não seja suficiente para completar todo o piso. E o que você faz? Continua a lutar com o misterioso e atraente espaço dos livros sumidos.
“A scientist is a person who knows more and more about less and less, until he knows everything about nothing.” (John M. Ziman)
E se exatamente essa mesma lógica dos livros no galpão servisse para ilustrar a nossa relação com a produção e distribuição do conhecimento? E se aqueles livros fossem realmente blocos do conhecimento humano? Como é que viemos dispondo as tecnologias, teorias e esforços intelectuais ao longo do tempo e do espaço?
Muito por causa do desenvolvimento social do nosso raciocínio e da nossa memória, produzir material intelectual se tornou algo intrínseco à nossa evolução. Pelo fato de a nossa existência estar acompanhada por um grande interesse em compreender e transformar o ambiente, estamos cada vez mais ligados às oportunidades e às necessidades de materializar e registrar os nossos esforços técnico-intelectuais.
No começo, na normalidade do episódio da colcha de livros, havia basicamente oportunidades: um galpão imenso a ser preenchido com livros. Milhares de espaços-oportunidades. E nessas condições, aproveitavam-se as oportunidades de maneira equilibrada e pulverizada. O esforço era bem distribuído ao longo do espaço.
A partir do momento em que os livros de um determinado espaço começaram a desaparecer repetidamente, o que prevaleceu foi a necessidade. Era preciso preencher aqueles vazios que se renovavam com o tempo. Em razão dessa necessidade, as oportunidades pelo restante do galpão ficaram em segundo plano.
No entanto, considerar que a mera renovação de conhecimento seja capaz de direcionar a produção intelectual seria pouco válido. A necessidade por atualização e reinvenção é pertinente a praticamente qualquer área do conhecimento. O que é, então, que torna tão evidente o caminho das necessidades, sobrepujando o espaço para as oportunidades?
Na Fórmula 1, muito se fala dos chamados vácuos, que são as zonas com baixa concentração de ar que se formam logo atrás de um veículo em alta velocidade, e que permitem que um carro que está a poucos metros do outro seja atraído por este, como que sugado por sua rapidez.
E é exatamente isso que a corrida tecnológica tem causado — num processo cíclico, em que essa própria corrida tem sido alimentada por esse lógica. A renovação e atualização técnica e intelectual da produção humana, de forma tão imediata, específica e objetiva, acaba por sempre abrir espaços-rastros em seu caminho. Vazios de recém-atualização que se tornam terreno fértil para seguidores investirem nessa linha de esforços de conhecimento. Os melhores smartphones são superados em meses, a sensibilidade de uma touch screen fica 50% melhor dentro de um ano, e os processadores mais rápidos se tornam atrasados em pouquíssimo tempo.
As demais oportunidades permanecem, mas a velocidade com que determinados assuntos são renovados atua como os vácuos da Fórmula 1, ou como o espaço-sumidouro da colcha de livros: por causa desses vazios, somos atraídos a pensar sobre isso, a estudar isso, investir nisso.
Mas não se trata de determinado assunto “estar na moda” e por isso ser cobiçado e atrair mais pensadores para trabalhar na área. O que acontece é que há uma transformação na lógica de renovação do espaço de conhecimento. E somos levados por esse novo formato.
1. Num ritmo mais “lento”, a amplitude da vida humana e da sua relação com ambiente, isto é, o próprio espaço, por si só, promove a diversidade de assuntos e áreas a serem desenvolvidas. Existe um universo inteiro a ser estudado e pesquisado, num potencial infinitamente maior que a nossa capacidade de preenchê-lo — ou seja, sempre haverá um assunto novo a ser estudado.
2. Num ritmo mais acelerado, o próprio tempo vai abrindo novos espaços de conhecimento. Assim, a superação de uma tecnologia, a contestação de uma teoria, o aperfeiçoamento de uma técnica, a comprovação de uma hipótese, tudo isso renova as possibilidades de estudo e pesquisa. Espacialmente, os conhecimentos ficam concentrados, num preenchimento cada vez mais verticalizado, empilhado pelo próprio tempo.
Dessa forma, é como se, ironicamente, o tempo passasse a ditar (e monopolizar) os potenciais espaços de conhecimento, em vez de o próprio espaço fazer isso. O tempo garante que um mesmo assunto requeira, sempre muito em breve, novos esforços de desenvolvimento intelectual. E o ritmo como isso acontece é quase como uma armadilha.
Já não é o fascínio pelo tamanho do universo e pelo número de oportunidades que nos move e nos inspira a produzir conhecimento, mas a presença de vácuos localizados em assuntos restritos — ou melhor, a rapidez como esses espaços se renovam e se reapresentam à humanidade.
Essa velocidade com que os vazios são gerados acaba por nos criar um senso de necessidade, que prioriza o preenchimento desses disputadíssimos espaços em detrimento das demais infinitas possibilidades. Assim, os efêmeros vácuos nessas zonas de conhecimento nos exige uma atualização também imediata, que dê continuidade ao egoísta desenvolvimento de determinado assunto ou tecnologia.
Num mundo que se diz tão cheio, tão evoluído, somos sugados justamente por tanto correr, numa aceleração desesperada e pouco justificável. Um mundo inteiro esperando por reais novidades, reais descobertas, reais revoluções, e o mais importante de tudo continua sendo a próxima revolucionária geração do iPhone. Tá certinho, galera.
Updater: Do Leitor
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