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O nome da rosa azul

“Quem não sabe é um ignorante, mas quem sabe e não diz nada é um criminoso.”— Bertolt Brecht
Sim, não existem rosasazuis. As raras que podem ser encontras pelo mundo são o resultado demanipulação genética. Essas exóticas flores só vêm à existência dessa forma;foram inventadas. O motivo eu não sei; talvez seja o fascínio pela cor azul, outalvez por estarem de saco cheio das rosas tradicionais ou por mórbidacuriosidade.
Em 1986, o diretor Jean-Jacques Annaud levou para as telasdos cinemas a adaptação do best-seller“O Nome da Rosa”, do escritor e filósofo UmbertoEco. O longa conta a história de Guilhermede Baskerville, um monge franciscano interpretado por Sean Connery. Ele e seu fiel aprendiz Adso de Melk (Christian Slater, na época com apenas 15 anos)precisam desvendar uma série de assassinatos, em um remoto mosteiro italiano. Oque provoca uma colossal batalha ideológica entre franciscanos e dominicanos, oque não impede o monge de solucionar o mistério por trás das mortes.
A história se passa em1327, em plena idade média, quando o poder eclesiástico vivia seu auge. Omosteiro possui uma imensa coleção de livros, com raros exemplares, os maiscobiçados do mundo daquela época. Guilherme, amante inveterado das ciências edo conhecimento, sem permissão para entrar na biblioteca e nem mesmo para rirdisso (o abade foi enfático sobre esse último detalhe), percebe que há umapossível ligação entre as mortes e aquele lugar. Muita gente conhece o filme eo livro, então não vou gastar muitas linhas dando spoilers aqui. Preciso apenas dessas imagens para iluminar oargumento do texto.
Hoje, temos poderes impossíveisde se imaginar. Muita gente não percebe, mas a Internet chegou a cinco minutos.Há bem pouco tempo, não tínhamos absolutamente nada do que é natural em nossodia a dia. Tente imaginar a sua vida sem acesso à rede mundial. Difícil, certo?Quando o sinal cai, dá um desespero. Ficamos sem rumo, sem saber o que fazer.Parece que a Web é tão ou mais importante que o próprio oxigênio.
Temos uma irresistívelnecessidade de estar conectados. Isso nos fez sair de nossas terras de origem econhecer o mundo todo. E, como se não bastasse, precisamos compartilhar cadadetalhe, mesmo que não sejam verdadeiros. Temos essa sanha de contar e mostrarpara os outros a nossa versão da realidade. Aquela em que estamos sempre de bemcom a vida, e na qual somos dignos de todos os privilégios possíveis. Comoseres humanos mortais não resistimos às seduções do mundo virtual. Tudo épublicável.
Ideologias conectampessoas.
Mudam-seos personagens, as datas e os lugares, mas a necessidade de uma ideologia paramanter as pessoas obedientes, e com um claro mapa para guiar seus passos nunca caiuem desuso. Mesmo agora, em pleno século XXI, quando temos todas as fontes deinformação à nossa disposição, bem na ponta dos dedos, preferimos clamar aosquatro ventos o que devemos fazer. E não faltam pessoas dispostas a vender assuas versões atualizadas de ideologia, capazes de mudar o mundo.
Porque a educação de um país é o seu calcanharde Aquiles?
Fala-sede economia como o maior problema de uma nação, mas todos os olhares estãosobre o conteúdo dos livros didáticos produzidos pelo governo. Quem controla oque é ensinado às crianças e aos adolescentes controla todo o sistema. Essa imensamassa de jovens, famintos por conhecimento e por uma oportunidade no mercado detrabalho, ávidos por mudar a sua pobre realidade, tende a engolir quase tudo o queé servido nas escolas que frequentam. Uma vez “formados”, aplicados ás regrasde um sistema que manipula suas opiniões, dificilmente serão capazes de usaruma crítica saudável para desfazer as amarras que os impedem de prosperar comoseres autônomos.
Nossasescolas, em geral, não se dedicam a preparar seus alunos a seremempreendedores. Seres pensantes e independentes, com ideias próprias eliberdade para colocá-las em prática, com apoio cuidadoso e monitoramento despretensiosode seus professores. O normal é seguir as regras, fazer as provas, respeitar acartilha, cumprir metas pré-definidas e não se desviar do programa. Mas, quempode garantir que isso vai ajudar os futuros cidadãos a terem algum sucesso navida?
Carl Sagan costumava dizer que a História está repleta de pessoas que, como resultado do medo, ou por ignorância, ou por cobiça de poder, “destruíram conhecimentos de imensurável valor que em verdade pertenciam a todos nós”. Todo aquele conhecimento guardado numa alta torre, bem no meio do mosteiro, instigava Guilherme ao imaginar as muitas maravilhas ocultas naquele lugar. Impedido pelas autoridades de entrar na biblioteca, ele precisou dar um jeito de chegar até lá, quebrando as regras para burlar a segurança. Quando o assassino percebeu que seria pego, preferiu queimar todos os livros, para apagar os vestígios de seus crimes, mesmo a um preço tão alto.
A ignorância gera mais frequentemente confiança do que o conhecimento, dizia Charles Darwin. Para ele, são os que sabem pouco, e não aqueles que sabem muito, que afirmam de uma forma tão categórica que este ou aquele problema nunca será resolvido pela ciência. Manter as pessoas ignorantes, criando mitos e maneiras tortas de explicar a realidade do mundo, é a forma mais eficiente de doutrinação já inventada. A rosa azul é uma invenção humana, assim como as ideologias que pululam de quatro em quatro anos.
Inventamosqualquer artifício para nos manter no controle da situação.
ONome da Rosa é apenas uma ficção. Mas, também um reflexo de uma realidade quese repete, século após século, governo após governo. Até nas situações maissimples da vida a gente quer impor nossa ideologia pessoal, nossos valores eregras morais, a versão atualizada de nossa ética de bolso. Quando um casal sesepara, cada um tem a sua própria versão da história, e, com certeza, nenhumdeles assume o papel de vilão. O “ex”é sempre ruim. A gestão anterior sempre deixa heranças malditas para o atualgoverno. Temos imensa dificuldade em vestir a carapuça. Queremos impor, eusamos a força que estiver à nossa disposição. Se for apenas um comentário emredes sociais, que seja. Mas, se for a caneta presidencial, melhor ainda. Opoder só não pode sair do lugar onde nós queremos que ele esteja.
Meusinimigos não estão no poder. Afinal, vivemos em uma democracia. Ganhou? Então,vamos governar juntos. Acertou? Então, parabéns! Errou? Então, vamos corrigirisso aí. Meus heróis também não morreram de overdose, pelo simples fato de quenão existem heróis. Essa é outra falácia com a qual tentam encher nossasmentes. Tem muita gente morrendo, sim, de overdose, mas talvez seja peloexcesso de perguntas sem respostas que inundam a realidade de todos nós. Mas,como dizia Cazuza, tem uma galera que prefere “pagar a conta do analista / pranunca mais / ter que saber / quem eu sou”. A falta de certezas está nossufocando, movendo o rebanho para lá e para cá, como um enxame de insetos semrainha.
Porque rimos tanto de vídeo “cassetadas”,principalmente se for no domingo, à noite? Talvez, porque estejamos com ódio daideia de voltar à dura realidade que nos espera na segunda, de manhã. É maisfácil assistir gente se dando mal em vídeos de gosto duvidoso, digerindo o fimde semana murcho, imaginando que talvez a desgraça daquela pessoa que caiu e sequebrou toda seja maior que a minha. Isso parece aliviar dores emocionais,mesmo que seja, na verdade, um belo placebo.
Acor da ignorância não é rosa e nem mesmo azul. A ignorância é uma invençãohumana, assim como a rosa azul. Diferente da flor, ela não tem uma cor. A suatransparência é o seu melhor disfarce. Quanto mais translúcida melhor. Assim, podemosacreditar que ela não exista. Isso oferece poder ilimitado àqueles que aprendema criar e impor ideologias. Dizem apenas o necessário, o suficiente para mantercalmos os ânimos da massa.
No filme, a pobre moça que era abusada por um monge em troca de comida, mal fala, mal se veste e nem mesmo tem um nome, uma identidade. Perfeita alegoria para o povo de qualquer país de terceiro mundo. A ingenuidade da garota esfarrapada, fruto de sua ignorância, era usada para justificar toda a violência que precisava viver para não morrer de fome, sem direito algum e nenhuma dignidade. O filme termina sem que seu nome seja revelado. Uma oportunidade de reflexão para quem assiste ao filme ou a triste realidade de quem vive no meio de uma guerra que parece nunca acabar.
No final, Guilherme consegue revelar a podridão oculta por trás de hábitos e largas paredes de pedra, provando que a insistência de um homem que amava a ciência e o bom uso do conhecimento valeram todos os seus sacrifícios. Um conhecimento livre, sem obstáculos. Algo que inspire a beleza da criação, do questionamento e que gere mudanças reais na sociedade. Um conhecimento saudável, com poder para despertar a criatividade em todos, independentemente de suas preferências. Um conhecimento que nos dê identidade, um nome que nos torne verdadeiramente humanos; livres para fazer nossas próprias escolhas.
Updater: William Barter
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