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O que entendia o menino do sorvete

Tinha a sensação de que, entediados com o Reino Animal, havíamos criados um Reino Humano, no qual era preciso categorizar pessoas, situações, expectativas, e depois viver aquele modelo como o mais natural dos ecossistemas.
Via que as pessoas não se reconheciam mais apenas como “pessoas”. Ser um ser humano já não diz muito de ninguém. Não valia nada. Era preciso dividir a fazenda, criar um puxadinho pra cada espécie, e ensinar a todo recém-nascido que tudo apenas era-pra-ser-assim. Se era-pra-ser herdeiro, classe média, alguém na vida, bem; se não, natural também.
De uma hora pra outra, aquela maravilha-dom-bênção de carregar consigo uma possibilidade de consciência, de consequência, de compaixão, de conhecimento, de lidar com a natureza, ou de qualquer outra coisa única da espécie humana que faz até arrepiar quando a gente pensa nisso com alguma sensibilidade, tudo isso meio que cansou de ser só isso.
Acostumamos — e não sei precisar quem somos esse nós, ou quando — que ser humano é diferente de ser gente. É só caminhar pela rua e reparar nas expressões. Homens e mulheres que caminham donos dali. Homens, mulheres e crianças que caminham apesar dali. Pelo profundo auto-não-pertencimento, eles carregam a culpa — nem sempre consentida — de que muita vez há diferenças menos sutis entre os próprios humanos do que entre humanos e cachorros.
A gente entendeu que é-pra-ser-assim, assim como um dia entenderam que os hereges mereciam execução ou que a escravidão era conveniente.
A gente entendeu que nós #SomosTodosMacacos só quando #todomundousaahashtagdoSomosTodosMacacos, e que é conveniente e bonitinho só se preocupar com o mundo quando o mundo aparece no Jornal Nacional e tem algum famoso falando disso no Facebook.
A gente entendeu que morador de rua é ok, faz parte da rua (quando não é a minha rua). A gente entendeu que o legal é ser contra a intolerância (mais do que começar a ser tolerante).
A gente entendeu que já está tudo pronto. Que tudo foi feito pra ser assim, essa caixinha. E que o negócio agora é achar o cantinho certo pra cada um se encaixar.
Anteontem, comprando um sorvete, um menino pobre me pediu que comprasse um pra ele também. Logo ali, a alguns metros dos escritórios de dezenas de empresas e dezenas de milhões de reais. Logo ali, ele entendia que era seu lugar pedir, e o meu, dar. Logo ali, eu ficava só caçando alguma confirmação de que, sim, tudo era feito pra ser assim.
No fim, ele ganhou o sorvete e eu ganhei uma certeza: não, não é pra ser assim. E nessa esperança ávida, lembrei que essa história de entender ainda pode ter um futuro bonito.
Um dia entenderam que a Lua nem era tão longe assim, e foram; que a escravidão não fazia sentido, e lutaram; e que a tal história do amor podia mesmo ser o caminho das pedras. No fim das contas, a gente sabe entender bem também.
Updater: Do Leitor
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