Os homenageados no Trip Transformadores 2019

por Nathalia Zaccaro e Carol Ito para a Revista TripÉ preciso uma dose extra de coragem para lutar contra os problemas enraizados na cultura brasileira. Há 13 anos, o Trip Transformadores reconhece o trabalho de gente corajosa que, com seus trabalhos, ideias e iniciativas de grande impacto ou originalidade, ajudam a promover o avanço do coletivo. “O prêmio existe para celebrar pessoas que descobriram maneiras mais inteligentes e generosas de gastar seu tempo nesta breve passagem por este planeta”, afirma o editor e fundador da Trip, Paulo Lima.

Os dez homenageados de 2019 são figuras inspiradoras que ajudam a evidenciar, de forma muito clara, a ideia de que só vai ficar bom para alguém quando estiver bom para todo mundo. Personalidades que usam sua visibilidade para reverberar causas importantes, gente que transforma uma luta individual em luta coletiva, que muda as engrenagens de um sistema injusto e violento e se dedica a desenvolver um jeito mais humano de lidar com as questões da sociedade.

São pessoas que estão na linha de frente apontando caminhos para a transformação e que traduzem o nosso jeito de olhar o mundo. E elas já estão entre nós. Descubra quem são os escolhidos deste ano:

Altamiran LopesRibeiro | Socioambientalem foco

Para o piauiense de 39 anos, preservar o modo devida de comunidades tradicionais —  quilombolas, indígenas, quebradeirasde coco e geraizeiros, por exemplo — é também cuidar do meio ambiente: “Essas pessoastêm uma relação forte com a natureza e a noção de que é preciso preservar rios,nascentes, plantar da melhor forma, sem o veneno que contamina o solo e aágua”, explica. O trabalho dele, com foco no desenvolvimento socioambiental,passa por evitar que grupos como esses sejam expulsos de suas terras, enfrentando a grilagem e o avanço do agronegócio no nordeste do Brasil.

No país que lidera o ranking de mortes deambientalistas – foram 57 em 2017, segundo o relatório da ONG britânica GlobalWitness –, ele conta que recebe ameaças constantes, mas segue na defesa dosmais vulneráveis: “O medo existe, mas você  vai deixar seus irmãosmorrendo? Muitas vezes, eles não se defendem porque não têm informação”, diz.Em 2018, Altamiran denunciou grileiros que agem na região de Matopiba aoConselho de Direitos Humanos da ONU. 

Altamiran atua há oito anos como coordenador daPastoral da Terra (organização que protege trabalhadores rurais) e há seis temdedicado esforços à região do Matopiba, que abrange partes dos estados doMaranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, área conhecida como a “última fronteiraagrícola” do país. “Os confrontos agrários estavam se acirrando cada vez mais,as pessoas estavam sofrendo com a pistolagem, sendo expulsas”, conta. “A terrapassou a ser um atrativo financeiro para investimento internacional, está namira de empresas e grandes fazendeiros.”

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Yvonne Bezerra deMello | Educação sem barreiras

Como educar crianças de rua em situação de extremavulnerabilidade? Essa foi a pergunta que a carioca Yvonne, 72 anos, se fezquando voltou ao Brasil em 1980. Ela havia acabado de concluir um doutorado naSorbonne, onde se dedicou a entender os problemas de aprendizado em criançasvivendo em estado de guerra em cinco países: Etiópia, Sudão, Quênia, Tanzânia eAngola. “Elas têm bloqueio de aprendizado devido a traumas e estresseconstante, que, em qualquer indivíduo, provocam a perda da memória curta e aincapacidade de memorização”, explica a filóloga e linguista. No Rio, elaidentificou problemas semelhantes nas crianças e adolescentes das ruas e passou13 anos dando aulas no que chama de “escola sem portas nem janelas”, que era aprópria rua.

Durante esse período, desenvolveu uma metodologiade ensino inovadora, que envolve exercícios de cálculo rápido e memorização.Conhecida como UERÊ-MELLO, a pedagogia de Yvonne já ajudou mais de 7 milcrianças, capacitou mais de 18 mil professores no Brasil e no exterior e vemauxiliando países europeus a lidarem com a nova geração de alunos refugiados. “Parauma criança de 6 anos aprender a ler e escrever, teria que ter 4 mil palavrasna memória. Atendo crianças que não têm nem 500. Ainda assim, conseguimos umaresiliência de 95% de desbloqueio cognitivo”, celebra.

Em 1993, Yvonne testemunhou a Chacina da Candelária– por esse motivo, foi sequestrada por oito policiais armados que a ameaçarampara que não fosse ao tribunal – e decidiu abrir uma escola para reunir ascrianças que sobreviveram à tragédia. Foi assim que surgiu o Projeto UERÊ, que,em 1998, se tornaria uma escola com portas e janelas na Favela da Maré.

O método UERÊ-MELLO foi reconhecida pela Unescocomo um dos seis melhores do mundo para lidar com crianças em zonas de risco.“Mesmo crianças que vêm de situações violentissimas aprendem”, diz.

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Eduardo Schenberg | Apsicodelia a serviço da saúde mental

Em busca de tratamentos mais eficientes paratranstornos mentais, Eduardo Schenberg, 39 anos, decidiu estudar os efeitos dedrogas psicoativas, como ayahuasca e MDMA no cérebro humano. “O transtorno doestresse pós-traumático, a dependência química e a depressão, que hoje é amaior causa de ausência no trabalho no Brasil, com um impacto econômico esocial gigantesco, são três das doenças que têm bastante potencial detratamento pela psicoterapia assistida por psicodélicos”, explica.

Eduardo, mestre em psicobiologia e doutor emneurociências, percebeu o avanço das pesquisas com psicodélicos no exterior edecidiu criar, em 2011, o Instituto Plantando Consciência para desenvolverestudos com essa abordagem no Brasil. “Os psicodélicos são substâncias muitomal faladas, proibidas e com um histórico infeliz de mau uso. Mas, quandoempregados terapeuticamente por profissionais bem treinados, que cumprem umasérie de protocolos, fornecem resultados mais rápidos e eficazes do que ostratamentos psiquiátricos atuais.”

Schenberg defende que é possível fazer um usoseguro de drogas e que a proibição aumenta o perigo dessas substâncias quandoafasta as pessoas de informações sobre a dose adequada e a qualidade do queestão consumindo. “A proibição impacta também na saúde mental de quem não usadrogas, porque todo mundo anda por aí com medo e a indústria da segurança estálevando o Brasil para uma escalada armamentista”, acrescenta.

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Simone Mozzilli | Dodiagnóstico à ação

A paulistana já trabalhava comovoluntária ajudando crianças em tratamento de câncer quando foi internada pararemover o que seria, a princípio, um cisto no ovário, em 2011. Ela tinha 34anos e, depois de 9 horas de cirurgia, ela acordou na UTI, onde recebeu odiagnóstico de que estava com câncer em fase avançada, com uma estimativa desobrevida que não passava de 30%. Hoje, aos 41, está curada e ampliou aabrangência do trabalho que faz para melhorar a vida de crianças e adolescentesque passam pelo tratamento da doença. “Depois de receber o diagnóstico, fuiprocurar informação sobre minha doença em sites de hospitais, porque pensei queseria mais adequado. Mas sempre falavam que o meu tipo de câncer era um dospiores, davam o número de mortes. Eu fiquei ainda mais apavorada”, contaSimone, que percebeu que essa situação também afetava as crianças.

Assim, em 2013, criou a ONG Beaba, que tem comomissão informar crianças e acompanhantes sobre uma série de termos médicos eprocedimentos que muitos têm dificuldade de entender. A ideia é que sefamiliarizarem (e se tranquilizem) durante essa jornada.

As ações e materiais (como cartilha, aplicativo egame) desenvolvidos pela ONG já impactaram mais de 700 mil pessoas. Em 2018,Simone transformou a cartilha que desenvolveu em um game que já foi baixado porcerca de 15 mil pessoas. Por meio dele, a criança ou adolescente aprendebrincando o significado de termos do mundo oncológico, como biópsia ehemograma. “É muito mais fácil quando a criança entende o que é a quimioterapiae porque ela está fazendo aquilo, ela se engaja muito mais no tratamento”,explica.

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Conceição Evaristo |Reescrevendo o Brasil

Uma das principais escritoras contemporâneas doBrasil, Conceição Evaristo encontrou na literatura um caminho para promover aempatia. “Minha escrita é profundamente marcada pela minha posição de mulhernegra na sociedade brasileira. Apesar dessa realidade muito específica, essaliteratura tem a força de provocar brancos, negros, jovens, mulheres e homens.Isso me emociona muito”, diz. Aos 72 anos, a mineira, que hoje mora em Maricá,região metropolitana do Rio de Janeiro, já publicou mais de 10 livros e suaexistência e trabalho são fundamentais para promover a temática negra ecombater o racismo estrutural no Brasil. 

Na infância pobre em Belo Horizonte, ela descobriuo gosto pelas palavras: “Minha mãe, que não tinha nem o primário completo,inventava muitas histórias para a gente [ela e os nove irmãos]. Meuprimeiro contato com a palavra foi por meio da oralidade”, conta. Aindajovem, teve que conciliar os estudos com o trabalho como empregada doméstica,e, tempos depois, se tornou professora e doutora em literatura. 

Apesar de escrever desde a adolescência, foi só em1990, aos 44 anos, que Conceição publicou seu primeiro livro, na série CadernosNegros, editada pelo coletivo Quilombhoje. Em 2018, apareceu cotada para aAcademia Brasileira de Letras, onde seria a primeira mulher negra, mas, apesarda intensa campanha popular, perdeu o lugar para Cacá Diegues. Em 2015, ganhouum prêmio Jabuti pelo livro de contos Olhos d’água (Pallas) e, em 2019,será homenageada como “personalidade literária do ano” durante a cerimônia deentrega do prêmio.

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Tabata Amaral |Educar para sonhar

“Foi a educação que me permitiu sonhar com umfuturo diferente. Por isso eu luto para que todos tenham acesso a uma escolapública de qualidade”, defende Tabata Amaral, que, aos 25 anos, exerce seuprimeiro mandato como deputada federal. Filha de um cobrador de ônibus e de umadiarista, a paulistana é um dos nomes mais promissores na, tão sonhada,renovação da política brasileira. 

Sua história começa em uma ocupação naVila Missionária, bairro da periferia de São Paulo, onde viveu boa parte davida. Aluna dedicada, ela venceu diversas olimpíadas científicas e conquistouuma bolsa integral na renomada Universidade Harvard, nos Estados Unidos, ondese formou em Ciências Políticas e Astrofísica. 

Seu ativismo pela educação começouainda no ensino médio. Em 2010, criou o Projeto VOA!, que prepara alunos deescolas públicas para participar de olimpíadas científicas por meio de aulasoferecidas por estudantes de colégios particulares. Em 2014, fundou o MapaEducação, que fiscaliza políticas educacionais e realiza debates para tornar aeducação uma prioridade na agenda nacional. 

Atualmente, sua luta acontece nocongresso, onde vem se destacando pela maneira firme e corajosa com que defendeo que acredita. Logo no início do mandato, foi destaque em todos os jornaispelo confrontamento com o então ministro da Educação Ricardo Vélez Rodríguez.“Em um trimestre, não é possível que o senhor apresente um Powerpoint com trêsdesejos para cada área da Educação. Cadê os projetos? Cadê as metas?”,questionou. 

Tabata também fazquestão de usar sua voz para inspirar outros jovens. Quando eu converso com alunos de ensino médio,sempre digo que, depois que a gente alcança os nossos sonhos, temos que voltarpara nossas comunidades para que todo mundo ao redor possa dizer: ‘Eu tambémposso sonhar’.”

Pedro Bial | Muitoalém do entretenimento

Por Carol Ito

Pedro Bial já foi correspondenteinternacional, diretor de documentários, jornalista de guerra e apresentador doreality show mais popular do país, o Big Brother Brasil. Sua diversa e bemsucedida carreira no jornalismo e no entretenimento fez dele um dos maiores comunicadoresdo país e o capacitou para a importante missão que desempenha agora: levar,para o maior canal aberto do Brasil, debates de altíssimo nível, sobre algunsdos mais importantes temas da atualidade.

Assuntos como racismo, homofobia, luto,ciência e religião, que até pouco tempo não eram discutidos com o devidocuidado na televisão, são tratados de forma acessível, inteligente e ponderadagraças à sua condução. 

À frente do programa Conversa do Bial,no ar na Rede Globo há quase dois anos, ele tem promovido encontros entrepessoas dos mais diversos perfis – sejam elas ativistas, generais, pastores ouateus – e levado informação de qualidade a inúmeras pessoas em um momentoespecialmente polarizado da nossa história. Com isso, vem ajudando a enfrentaro radicalismo e a tornar o Brasil um pouco mais inteligente. 

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Rodrigo Mendes | Incluir paraeducar 

Por Carol Ito

Rodrigo Mendes ficou tetraplégico aos18 anos, depois de levar um tiro no pescoço durante um assalto. O paulistano,que passou anos em tratamento, transformou uma situação de adversidade em umaalavanca, ao invés de uma âncora. Ele dedica sua vida para garantir que pessoascom deficiência tenham acesso à educação de qualidade, não só em escolasespeciais, mas junto de todas as outras crianças, em qualquer escola, seja elapública ou particular. 

Há 25 anos, ele fundou o InstitutoRodrigo Mendes, uma organização sem fins lucrativos que busca promover umaeducação inclusiva, a partir da formação de professores, da mobilização de escolase famílias e do acompanhamento de políticas públicas. Para ampliar seupropósito, ele criou, em 2012, o Portal Diversa, um acervo de boas práticas naeducação, além de outros programas de formação de professores em todo o Brasil.

“Até pouco tempo, a única opção parapessoas com deficiência era a escola especial, que limita muito a interação dacriança com o resto do mundo. Ela precisa ser desafiada para atingir o máximode seu potencial”, explica Rodrigo, que também fala sobre a importância deconviver com a diversidade desde cedo. “A gente tá falando de uma mudança naescola que é melhor para todo mundo, que torna a pedagogia mais promissora paratodos.”

Formado em administração de empresascom mestrado em gestão da diversidade humana (tudo na Fundação Getúlio Vargas),Rodrigo iniciou, em paralelo com a atuação no instituto, uma carreira emconsultoria de empresas na gigante do setor, a Accenture, onde trabalhou emprojetos em diferentes indústrias. Em 2008, foi nomeado como Young GlobalLeader do Fórum Econômico Mundial.

Dexter e Iberê Dias I Opostoscomplementares 

“Não tem cachê maiorou melhor do que ver a vida de alguém mudar bem ali na sua frente, por conta doseu trabalho. É foda”, diz Dexter. O rapper usa sua visibilidade para promovero projeto Trampo Justo, iniciativa do juiz Iberê Dias que se volta aos cerca de8 mil jovens que vivem em casas de acolhimento no estado de São Paulo. O foco écriar pontes para o mercado profissional para quem, aos 18 anos, precisaencarar o mundo sozinho. 

Comtrajetórias de vidas completamente diferentes, o juiz e o rapper que passou 13anos de sua vida atrás das grades e está em liberdade há quase dez, mostram quea desigualdade de oportunidades é o que leva muitos jovens a ingressarem nomundo do crime.  

Para ajudar a mudaressa história, Dexter faz questão de usar a sua própria experiência comoalerta. “Minha ideia é mostrar para essas pessoas que elas têm, sim, umpotencial muito grande, que não precisam do crime para sobreviver. No fundo, alinha é uma só: salvar vidas. Trocar ideia para que, de alguma forma, elas seencontrem e passem a ter o que eu tenho, que é vontade de viver”, diz. A figurade alguém que saiba falar de igual para igual com esses jovens é fundamentalpara o sucesso do projeto. “Por mais que eu lide com adolescentes desseperfil, é inevitável que eles olhem para mim e digam: ‘Pô, é fácil você viraqui me falar para trabalhar. É um homem branco, de classe média alta, queestudou em bons colégios… Você não faz ideia do que é ser pobre e negro naperiferia’. E eles têm razão”, explica o juiz.

Walter Casagrande I O que a vida querda gente é coragem  

Filho de um caminhoneiro e de uma dona de casa,Walter Casagrande nem chegou a concluir o segundo grau. Não teve tempo: aos 17anos já era jogador de futebol profissional. Dois anos depois, aos 19,tornou-se o homem-gol do seu clube do coração, o Corinthians. Era o começo dadécada de 80, fase da mítica “democracia Corinthiana”, um movimentoque defendia as eleições diretas em tempos de Ditadura Militar e, junto com omelhor amigo Sócrates, ele se transformou em um símbolo político e viveu seusmelhores anos no futebol. 

Mas a vida guardavasurpresas para Casagrande. Depois de encerrar sua bem sucedida carreira noesporte- e com a mesma força que teve para conquistar todos os seus sonhos –ele foi empurrado ladeira abaixo. A cerveja, a maconha, a cocaína e tudo o queele sempre achou que dominava, aos poucos, o derrotaram. Quando deu por si,estava em uma clínica de reabilitação depois de passar dias em coma por causade um acidente de carro. Casagrande perdia de goleada. 

O ex-jogador e comentarista passou por um longo e dolorosoprocesso de reabilitação e reconquistou as rédeas de sua história. Hoje é daspouquíssimas personalidades que tem coragem de vir a público falar sobre otema, ajudando a desconstruir o estereótipo que envolve a doença. 

Em 2013, lançou a biografia Casagrande e seus Demônios, escrita pelo jornalista Gilvan Ribeiro, em que revelou detalhes de sua luta. Em 2018, participou da série “Prisão química”, do Fantástico, na TV Globo, em que abriu o jogo sobre sua dependência em uma franca conversa com o médico Drauzio Varella. “O acolhimento tem que vir do Estado, para que, assim, as outras pessoas entendam que o que temos que dar para um dependente químico é acolhimento”, diz Casagrande, um sujeito gigante, de 1,91 metro de altura, força e coragem. O Update or Die é apoiador cultural e de mídia do Prêmio desde sempre com muito orgulho!

Updater: Gustavo Giglio

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