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Viagem para a escuridão: pelo retrovisor da limousine, “Cosmópolis” vê “Taxi Driver”

Em 1976, “Taxi Driver” saía da garagem para entrar nos cinemas do mundo inteiro. O choque de ver o bestial Travis Bickle (Robert DeNiro), um ex-guerrilheiro com sérios problemas de insônia, dirigindo pelas ruas de Nova York, foi imenso. Para onde Travis estava nos levando?

A trama ecoava a geração pós-guerra do Vietnã, sua solidão patológica e a solidificação do neoliberalismo como um sistema de governo soberano. Travis até tenta se encaixar nesse modelo de vida. Mas seu verdadeiro chamado é pra limpar a sociedade com as próprias mãos. 

Aplicando filosofias do poder absoluto do estado sobre os homens e a corrupção da sociedade pelo próprio sistema, a degradação urbana de “Taxi Driver” é a mesma de “Cosmópolis”, lançado em 2011. 

Eric Packer (Robert Pattison) tem quase a idade de Travis e o mesmo estado emocional. Em vez de dirigir um taxi, ele anda de limousine. 

O roteiro é adaptado do livro de Don Delillo. A simbologia de “Taxi Driver”, usando até planos cinematográficos parecidos, é sacada de David Cronenberg. Ele é um diretor que desnuda a bestialidade dos desejos humanos, seja no sentido literal, como em “A Mosca” ou revelando faces íntimas e morais, como “Crash – Estranhos Prazeres” e “Marcas da Violência”. Para “Um Método Perigoso”, uma espécie de biografia de Freud e Jung, ele troca de cadeira: deixa o objeto do estudo e analisa quem estuda o objeto. Em “Cosmópolis”, Cronenberg abandona o indivíduo para tratar a animalidade do sistema onde ele vive.

Robert Pattinson em “Cosmópolis”

Nova York é uma metrópole cheia de ratos. Travis quer limpar a sujeira da cidade e compra armas. Os ratos que ele vai combater são os negros, homossexuais, travestis, cafetões. “Todos os animais saem à noite – prostitutas, depravados, pederastas, drag queens, michês, drogados, viciados, doentes, mercenários. Um dia uma chuva de verdade virá e lavará toda essa escória para fora da rua.”

Em 2011, os ratos querem tomar o poder. Não é à toa que, ao cruzar a cidade, Eric enfrenta manifestantes segurando roedores imensos. Ao meu ver, enquanto Scorsese trabalhou o lado oprimido, Cronenberg desenhou sobre o contorno do opressor. 

É interessante como a cidade se torna parte dessa anomalia atemporal. Quarenta anos atrás, sem internet, celular ou redes sociais, Travis vagava pela noite para não ceder à própria loucura e ter um propósito bom. Eric ganha dinheiro com a loucura. Cruzar a cidade para cortar o cabelo é Cronenberg atestando a fragilidade da atual geração diante dos questionamentos existenciais.

Em lados aparentemente opostos, os dois personagens querem sentir o que a civilidade roubou. Onde, exatamente, cada um perdeu sua humanidade? Será que eles foram corrompidos ou não nasceram bons? 

Para lidar com as questões, Cronenberg introjeta o seu protagonista para dentro de “Taxi Driver”: o relacionamento opaco de Packer com as mulheres, seu modo insone de lidar com o trabalho e até o corte de cabelo em ambas histórias é simbólico.

Na cena mais evidente desse empréstimo artístico, Travis e Erick empunham uma arma como sinônimo de criação, não fim. Não é uma simples referência. O filme de Scorsese é claramente mais influente, complexo e decisivo, embora Cronenberg também seja um diretor de estilo próprio. “Cosmópolis” é uma reinterpretação do vazio e loucura a partir da nossa suposta evolução social, civil, econômica e intelectual. 

O livro “A Sociedade do Cansaço”, de Byung-Chul Han, traz uma teoria que liga esses dois personagens. Não existe mais “um sistema de coerção externa, e sim uma organização interna que obriga o sujeito a ser empreendedor de si mesmo”, com resumiu Leandro Chevitarese, professor de filosofia da UFRRJ. A ficção de Delillo adiantou muito dessa teoria, assim como o cinema de Cronenberg. Em “Cosmópolis”, o reflexo mostra dois animais sem coleira desesperados para impedir a própria deformação.

Dialogando com épocas diferentes, mas mantendo o mesmo desejo de ser ou fazer algo e não realizá-lo porque o mundo é impermeável, Eric olha para Travis pelo retrovisor. Estamos neste carro. Para onde eles estão nos levando?

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